Crónica de Alexandre Honrado
O que escrever quando é inútil a escrita
Se Adorno[1], a propósito do Holocausto, afirmou que “já não é possível escrever poesia depois de Auschwitz”, é tempo de aceitar uma ideia que há muito me persegue: depois de tudo o que o século XXI tem produzido, já não é possível escrever uma prosa identitária e o que dela restar em afetividade arde no lume brando de todos os impactos traumáticos? (Falo da produção do Mal, para usar uma imagem fácil. Falo dos fundamentalismos, dos atentados, do genocídio, das matanças em massa, das fugas e dos refugiados, dos raptos, das violações, do negar dos direitos humanos, da violência nacional ou local (e nesta, na doméstica), dos noticiários quotidianos, do ser que se imaterializa numa frieza de espectador ausente daquilo que devia ser a casa comum, a terra de todos, a matéria de que são feitos os sentimentos mais elevados.
É claro que Adorno esquecia-se, ao produzir a frase citada, da bipolaridade que suporta e caracteriza o ser humano: somos a um tempo capazes da dizimação do próximo – até de nós! – e , em contrapartida, em polo oposto, assinamos os mais espantosos atos de criar. Assim, a poesia continua a perseguir-nos como um predador atrás da presa, e não a excluímos completamente do que somos; a poesia possível vai-se escrevendo, distanciando-se, pela memória dissipável, dos horrores da Segunda Guerra e de todas as guerras que lhe foram sucedendo.
Adorno consagrava com a frase aqui trazida como matéria de reflexão, a incapacidade da gestação de um homem novo – uma ideia perseguida em tantas épocas.
(continua para a semana).
[1] Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno, ou simplesmente Theodor Adorno (Frankfurt am Main, 11 de setembro de 1903 – Visp, 6 de agosto de 1969) foi um filósofo, sociólogo, musicólogo e compositor alemão. É um dos expoentes da chamada Escola de Frankfurt, juntamente com Max Horkheimer, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Jürgen Habermas e outros.
Alexandre Honrado
Pode ler (aqui) todos os artigos de Alexandre Honrado